VAYETSE
- sinagoga17
- 23 de nov.
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Atualizado: 24 de nov.
VAYETSE
Encontrando D-s
É uma das grandes visões da Torá. Yaakov (Jacó), sozinho à noite, fugindo da ira de Esav, deita-se para descansar e vê não um pesadelo de medo, mas uma epifania:
Com o tempo, ele [Yaakov] encontrou por acaso um certo lugar [ vayifga bamakom ] e decidiu passar a noite ali, pois o sol já havia se posto. Pegou algumas pedras do local e as colocou sob a cabeça, e ali se deitou para dormir. E sonhou: viu uma escada posta no chão, cujo topo alcançava os céus. Nela, anjos de D-s subiam e desciam. O Senhor estava sobre ela... Gênesis 28:11-13
Então Yaakov acordou do seu sono e disse: "Verdadeiramente, o Senhor está neste lugar, e eu não sabia!" Ele ficou com medo e disse: "Quão temível é este lugar! Este é nada menos que a Casa de D-s, e esta é a porta dos Céus!" Gênesis 28:16-7
Com base nessa passagem, os Sábios disseram que “Yaakov instituiu a oração da noite”. A inferência se baseia na palavra vayifga, que pode significar não apenas “ele veio, encontrou, deparou-se com, por acaso”, mas também “ele orou, suplicou, implorou”, como em Jeremias: “Não ore por este povo, nem levante um clamor por eles, nem suplique a Mim… [ve-al tifga bi]” ( Jeremias 7:16 ).
Os Sábios também entenderam que a palavra bamakom, “o lugar”, significava “D-s” (o “lugar” do universo). Assim, Yaakov completou o ciclo de orações diárias. Avraham instituiu o shacharit, a oração da manhã; Ytzhak iniciou o mincha, a oração da tarde; e Yaakov foi o primeiro a estabelecer o arvit, também conhecido como maariv, a oração da noite.
Essa é uma ideia impressionante. Embora cada uma das orações dos dias da semana seja idêntica em sua redação, cada uma carrega a personalidade de um dos patriarcas. Avraham representa a manhã. Ele é o iniciador, aquele que introduziu uma nova consciência religiosa no mundo. Com ele, um novo dia começa.
Ytzhak representa a tarde. Não há nada de novo em Ytzhak – nenhuma grande transição das trevas para a luz ou da luz para as trevas. Muitos dos incidentes na vida de Ytzhak recapitulam os de seu pai. A fome o força, como aconteceu com Avraham, a ir para a terra dos filisteus. Ele reabre os poços de seu pai.
A vida de Ytzhak é o heroísmo silencioso da continuidade. Ele é um elo na corrente da aliança, unindo uma geração à outra. Ele não introduz nada de novo na vida de fé, mas sua vida tem sua própria nobreza. Ytzhak é a firmeza, a lealdade, a determinação de continuar.
Yaakov representa a noite. Ele é o homem do medo e da fuga, o homem que luta com D-s, com os outros e consigo mesmo. Yaakov é alguém que conhece as trevas deste mundo.
Existe, contudo, uma dificuldade com a ideia de que Yaakov introduziu a oração da noite. Num episódio famoso do Talmud, o Rabino Joshua defende a ideia de que, ao contrário de Shacharit ou Mincha, a oração da noite não é obrigatória (embora, como observam os comentadores, tenha-se tornado obrigatória pela aceitação de gerações de judeus). Por que razão, se foi instituída por Yaakov, não lhe foi atribuída a mesma obrigação que as orações de Avraham e Ytzhak? A tradição oferece três respostas.
A primeira visão é a de que Arvit não é obrigatório, segundo aqueles que sustentam que nossas orações diárias se baseiam não nos patriarcas, mas nos sacrifícios oferecidos no Templo. Havia uma oferenda pela manhã e outra à tarde, mas não um sacrifício à noite. As duas visões divergem precisamente neste ponto: para aqueles que atribuem a origem da oração ao sacrifício, a oração da noite é voluntária, enquanto para aqueles que a baseiam nos patriarcas, ela é obrigatória.
A segunda é que existe uma lei que isenta de oração aqueles que estão em viagem (e durante os três dias seguintes). Nos tempos em que as viagens eram perigosas – quando os viajantes viviam em constante temor de ataques de saqueadores – era impossível se concentrar. A oração exige concentração ( kavanah ). Portanto, Yaakov estava isento de oração e ofereceu sua súplica não como uma obrigação, mas como um ato voluntário – e assim permaneceu.
A terceira é que existe uma tradição que conta que, enquanto Yaakov viajava, “o sol se pôs repentinamente” – não no horário habitual. Yaakov pretendia fazer a oração da tarde, mas, para sua surpresa, descobriu que a noite já havia caído. Arvit não se tornou uma obrigação, visto que Yaakov não tinha a intenção de fazer uma oração vespertina.
Existe, porém, uma explicação mais profunda. Uma construção linguística diferente é usada para cada uma das três ocasiões que os Sábios consideraram como a base da oração. Avraham “levantou-se de manhã cedo para o lugar onde estivera diante de D-s” (Gênesis 19:27). Ytzhak “saiu para meditar [lasuach] no campo ao entardecer” (Gênesis 24:63). Yaakov “encontrou, deparou-se, cruzou-se com, achou-se por acaso com” D-s [vayifga bamakom]. Estas são diferentes tipos de experiência religiosa.
Avraham iniciou a busca por D-s. Ele foi uma personalidade religiosa criativa – o pai de todos aqueles que partiram em uma jornada espiritual rumo a um destino desconhecido, armados apenas com a confiança de que aqueles que buscam, encontram. Avraham buscou a D-s antes que D-s o buscasse.
A oração de Ytzhak é descrita como uma sichah (literalmente uma conversa ou diálogo). Há duas partes em um diálogo: uma que fala e outra que ouve e, após ouvir, responde. Ytzhak representa a experiência religiosa como uma conversa entre a palavra de D-s e a palavra da humanidade.
A oração de Yaakov é muito diferente. Ele não a inicia. Seus pensamentos estão em outro lugar – em Esav, de quem está fugindo, e em Labão, para onde está viajando. Em sua mente perturbada, surge uma visão de D-s, dos anjos e de uma escada que liga a terra ao céu. Ele não fez nada para se preparar para isso. É inesperado. Yaakov literalmente “encontra” D-s, assim como nós às vezes encontramos um rosto familiar em meio a uma multidão de estranhos. Este é um encontro provocado por D-s, não pelo homem. É por isso que a oração de Yaakov não poderia se tornar a base de uma obrigação regular. Nenhum de nós sabe quando a presença de D-s irá repentinamente invadir nossas vidas.
Há um elemento na vida religiosa que está além do controle consciente. Ele surge do nada, quando menos esperamos. Se Avraham representa nossa jornada em direção a D-s, e Ytzhak nosso diálogo com D-s, Yaakov simboliza o encontro de D-s conosco – não planejado, não agendado, inesperado; a visão, a voz, o chamado que jamais podemos prever, mas que nos transforma. Assim como Yaakov, assim também acontece conosco. É como se despertássemos de um sono e percebêssemos, como se fosse a primeira vez, que “D-s esteve neste lugar e eu não sabia”. O lugar não mudou, mas nós sim. Tal experiência jamais poderá ser objeto de obrigação. Não é algo que fazemos. É algo que nos acontece. Vayfiga bamakom significa que, ao pensarmos em outras coisas, percebemos que entramos na presença de D-s.
Essas experiências acontecem — literal ou metaforicamente — à noite. Acontecem quando estamos sozinhos, com medo, vulneráveis, perto do desespero. É então que, quando menos esperamos, podemos ver nossas vidas inundadas pela luz do Divino. De repente, com uma certeza inconfundível, sabemos que não estamos sozinhos, que D-s está lá e sempre esteve, mas que estávamos tão preocupados com nossos próprios problemas que não o notávamos. Foi assim que Yaakov encontrou D-s — não por seus próprios esforços, como Avraham; não por meio de um diálogo contínuo, como Ytzhak; mas em meio ao medo e ao isolamento. Yaakov, em fuga, tropeça e cai — e descobre que caiu nos braços acolhedores de D-s. Ninguém que teve essa experiência jamais a esquece. “Agora eu sei que o Senhor estava comigo o tempo todo, mas eu estava olhando para outro lugar.”
Essa era a oração de Yaakov. Há momentos em que falamos e momentos em que somos interpelados. A oração nem sempre é previsível, uma questão de horários fixos e obrigações diárias. É também uma abertura, uma vulnerabilidade. D-s pode nos pegar de surpresa, nos despertando do sono, nos amparando quando caímos.
Texto original “Encountering God” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l
