top of page
IMG_4396.JPG
Buscar
  • há 4 dias
  • 5 min de leitura

VAYERA

Ainda Mais Elevados Que os Anjos

É uma das cenas mais famosas da Bíblia. Avraham está sentado à entrada de sua tenda no calor do dia quando três estranhos passam por ali. Ele os convida a descansar e comer algo. O texto os chama de 'anashim' – 'homens'. Na verdade, são anjos, que vieram anunciar a Sara que ela terá um filho. (Gênesis 18)


O capítulo parece simples. No entanto, é complexo e ambíguo. É composto por três seções:

Versículo 1: D-s aparece a Avraham. Versículos 2-16: Avraham e os homens/anjos. Versículos 17-33: O diálogo entre D-s e Avraham sobre o destino de Sodoma.

Como essas seções se relacionam entre si? Trata-se de uma única cena, duas ou três? A resposta mais óbvia é três. Cada uma das seções acima representa um evento separado. Primeiro, D-s aparece a Avraham, como explica Rashi, “para visitar os enfermos” após a circuncisão de Avraham. Em seguida, chegam os visitantes com a notícia sobre o filho de Sara. Depois, ocorre o grande diálogo sobre justiça.


Maimônides sugere (em Guia dos Perplexos II:42) que existem duas cenas (a visita dos anjos e o diálogo com D-s). O primeiro versículo não descreve um evento em si. É, antes, um título de capítulo.


A terceira possibilidade é que tenhamos uma única cena contínua. D-s aparece a Avraham, mas antes que Ele possa falar, Avraham vê os transeuntes e pede a D-s que espere enquanto ele lhes serve comida. Somente quando eles se vão – no versículo 17 – ele se volta para D-s, e a conversa começa.


A forma como interpretamos o capítulo afetará a maneira como traduzimos a palavra Adonai no terceiro versículo. Ela pode significar (1) D-s ou (2) 'meus senhores' ou 'senhores'. No primeiro caso, Avraham estaria se dirigindo ao Céu. No segundo, ele estaria falando com os transeuntes.


Diversas traduções em inglês optam pela segunda opção. Aqui está um exemplo:

O Senhor apareceu a Avraham... Ele olhou para cima e viu três homens em pé diante dele. Ao vê-los, apressou-se a sair da entrada da sua tenda para recebê-los. Inclinando-se profundamente, disse: "Senhores, se mereci o vosso favor, não passem pela frente do seu servo sem lhe fazer uma visita."

A mesma ambiguidade aparece no capítulo seguinte, quando dois visitantes de Avraham (neste capítulo descritos como anjos) visitam Ló em Sodoma:

Os dois anjos chegaram a Sodoma ao entardecer, enquanto Ló estava sentado junto aos portões da cidade. Quando os viu, levantou-se para recebê-los e, curvando-se profundamente, disse: "Peço-lhes, senhores, que se aproximem e vão à casa de seu servo para passar a noite lá e lavar os pés."  Gênesis 19:2

Normalmente, as diferenças de interpretação da narrativa bíblica não têm implicações haláchicas. São questões de discordância legítima. Este caso é incomum, porque se traduzirmos Adonai como "D-s", trata-se de um nome sagrado, e tanto a escrita da palavra por um escriba quanto a forma como tratamos um pergaminho ou documento que a contenha possuem rigores especiais na lei judaica. Se a traduzirmos como "meus senhores" ou "senhores", então não possui nenhuma santidade especial.


A leitura mais simples de ambos os textos – um referente a Avraham, o outro a Ló – seria ler a palavra em ambos os casos como "senhores". A lei judaica, no entanto, determinava o contrário. No segundo caso – a cena com Ló – lê-se como "senhores", mas no primeiro lê-se como "D-s". Este é um fato extraordinário, pois sugere que Avraham interrompeu D-s quando Ele estava prestes a falar e pediu-Lhe que esperasse enquanto atendia seus convidados. Esta é a interpretação tradicional da passagem:

O Senhor apareceu a ele... Avraham olhou para cima e viu três homens em pé perto dele. No instante em que os viu, correu da entrada de sua tenda para cumprimentá-los e prostrou-se com o rosto em terra. [Voltando-se para D-s] disse: “Meu Senhor, se encontrei graça aos teus olhos, peço-te que não passes por cima do teu servo [isto é, peço-te que esperes por mim até que eu tenha oferecido hospitalidade a estes homens].” [Então, voltou-se para os homens e disse:] “Que se traga um pouco de água para que lavem os pés e descansem debaixo da árvore...”  Gênesis 18:1-5

Essa interpretação ousada tornou-se a base de um princípio no judaísmo: “Maior é a hospitalidade do que receber a Presença Divina”. Diante da escolha entre ouvir a D-s e oferecer hospitalidade a [aparentemente] seres humanos, Avraham escolheu a segunda opção. D-s atendeu ao seu pedido e esperou enquanto Avraham levava comida e bebida aos visitantes, antes de iniciar um diálogo com ele sobre o destino de Sodoma.


Como isso é possível? Não seria, no mínimo, desrespeitoso, e, no pior dos casos, herético, colocar as necessidades dos seres humanos acima da presença de D-s?


O que a passagem nos revela, porém, é algo de imensa profundidade. Os idólatras da época de Avraham adoravam o sol, as estrelas e as forças da natureza como deuses. Adoravam o poder e os poderosos. Avraham sabia, contudo, que D-s não está na natureza, mas além dela. Há apenas uma coisa no universo sobre a qual Ele colocou a Sua imagem: o ser humano, cada pessoa, poderosa ou impotente.


As forças da natureza são impessoais, razão pela qual aqueles que as adoram acabam por perder a sua humanidade. Como diz o Salmo:

Seus ídolos são de prata e ouro, feitos por mãos humanas. Têm boca, mas não podem falar; olhos, mas não podem ver; têm ouvidos, mas não podem ouvir; narinas, mas não podem cheirar… Seus criadores se tornam como eles, e o mesmo acontece com todos os que neles depositam sua confiança. Salmo 115

Não se pode adorar forças impessoais e permanecer uma pessoa: compassiva, humana, generosa, indulgente. Precisamente porque acreditamos que D-s é pessoal, alguém a quem podemos dizer "Tu", honramos a dignidade humana como sacrossanta. Avraham, pai do monoteísmo, conhecia a verdade paradoxal de que viver a vida de fé é ver o traço de D-s no rosto do estranho. É fácil receber a Presença Divina quando D-s aparece como D-s. O difícil é sentir a Presença Divina quando ela se disfarça de três transeuntes anônimos. Essa era a grandeza de Avraham. Ele sabia que servir a D-s e oferecer hospitalidade a estranhos não eram duas coisas, mas uma só.


Um dos comentários mais belos sobre este episódio foi feito pelo Rabino Shalom de Belz, que observou que, no versículo 2, os visitantes são descritos como estando acima de Avraham [nitzavim alav]. No versículo 8, Avraham é descrito como estando acima deles [omed alehem]. Ele disse: a princípio, os visitantes estavam acima de Avraham porque eram anjos e ele um mero ser humano. Mas quando ele lhes deu comida, bebida e abrigo, ele se tornou ainda mais elevado do que os anjos. Honramos a D-s honrando Sua imagem, a humanidade.

 

 

Texto original “Even Higher than Angels” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l



  • 29 de out.
  • 5 min de leitura

LECH LECHA

Nossos Filhos Seguem em Frente

O chamado a Avraham, com o qual Lech Lecha começa, parece vir do nada:

“Deixe sua terra, seu local de nascimento e a casa de seu pai e vá para uma terra que eu lhe mostrarei.”

Nada nos preparou para essa mudança radical. Não tivemos uma descrição de Avraham como a que tivemos no caso de Noach ("Noach era um homem justo, perfeito em suas gerações; Noach andava com D-s"). Nem nos foi dada uma série de vislumbres de sua infância, como no caso de Moshe. É como se o chamado de Avraham fosse uma ruptura repentina com tudo o que o precedeu. Parece não haver prelúdio, contexto ou pano de fundo.


A isto se acrescenta um versículo curioso no último discurso proferido por Yehoshua (Josué), sucessor de Moshe:

Então Josué disse a todo o povo: Assim diz o Senhor, o D-s de Israel: 'Há muito tempo, vossos pais viviam além do rio (Eufrates), Terah, pai de Avraham e de Nachor; e eles serviam a outros deuses. Josué 24:2

A implicação parece ser que o pai de Avraham era um idólatra. Daí a famosa tradição midráshica de que, quando criança, Avraham quebrou os ídolos de seu pai. Quando Terah lhe perguntou quem havia causado o dano, ele respondeu: "O maior dos ídolos pegou um pedaço de pau e quebrou os demais".

“Por que você está me enganando?”, perguntou Terah. “Os ídolos têm entendimento?”
“Que os teus ouvidos ouçam o que a tua boca diz”, respondeu a criança. Bereishit Rabá 38:8

Nessa leitura, Avraham era um iconoclasta, um destruidor de imagens, alguém que se rebelou contra a fé de seu pai.


Maimônides, o filósofo, expressou a questão de forma um pouco diferente. Originalmente, os seres humanos acreditavam em um D-s único. Mais tarde, começaram a oferecer sacrifícios ao sol, aos planetas, às estrelas e a outras forças da natureza, como criações ou servos do D-s único. Mais tarde ainda, passaram a adorá-los como entidades – deuses – por direito próprio. Foi preciso Avraham, usando apenas a lógica, para perceber a incoerência do politeísmo:

Depois de ser desmamado, ainda criança, sua mente começou a refletir. Dia e noite, ele pensava e se perguntava: como é possível que esta esfera celeste guie continuamente o mundo, sem algo para guiá-la e fazê-la girar? Pois ela não pode se mover por conta própria. Ele não tinha professor ou mentor, pois estava imerso em Ur dos Caldeus, entre idólatras tolos. Seu pai, sua mãe e toda a população adoravam ídolos, e ele adorava com eles. Ele continuou a especular e refletir até alcançar o caminho da verdade, entendendo o que era certo por meio de seus próprios esforços. Foi então que ele soube que existe um D-s que guia os corpos celestes, que criou tudo e, além dele, não há outro D-s.  Maimônides, Leis da Idolatria 1:2

O que Maimônides e o Midrash têm em comum é a descontinuidade. Avraham representa uma ruptura radical com tudo o que o precedeu.


Notavelmente, porém, o capítulo anterior nos dá uma perspectiva bem diferente:

Estas são as gerações de Terah. Terah gerou Avram, Nachor e Haran; e Haran gerou Lot... Terah tomou seu filho Avram, e Lot, filho de Haran, seu neto, e Sarai, sua nora, mulher de seu filho Avram, e partiram juntos de Ur dos Caldeus para a terra de Canaan. Chegando a Haran, estabeleceram-se ali. Terah viveu 205 anos, e Terah morreu em Haran.  Gênesis 11:27-32

A implicação parece ser que, longe de romper com seu pai, Avraham estava continuando uma jornada que Terah já havia começado.


Como conciliar essas duas passagens? A maneira mais simples, adotada pela maioria dos comentaristas, é que elas não estão em sequência cronológica. O chamado a Avraham (em Gênesis 12) aconteceu primeiro. Avraham ouviu o chamado divino e o comunicou ao pai. A família partiu junta, mas Terah parou no meio do caminho, em Haran. A passagem que registra a morte de Terah é colocada antes do chamado de Avraham, embora tenha ocorrido mais tarde, para protegê-lo da acusação de que ele falhou em honrar seu pai ao abandoná-lo na velhice (Rashi, Midrash).


No entanto, há outra possibilidade óbvia. A percepção espiritual de Avraham não surgiu do nada. Terah já havia dado o primeiro passo em direção ao monoteísmo. Os filhos completam o que seus pais começam.


Significativamente, tanto a Bíblia quanto a tradição rabínica entendiam a paternidade divina dessa maneira. Elas contrastavam a descrição de Noach (“Noach andou com D-s”) e a de Avraham. (“O D-s diante de quem andei”, Gênesis 24:40) O próprio D-s diz a Avraham: “Anda na minha frente e sê perfeito”. (Gênesis 17:1) D-s sinaliza o caminho e então desafia Seus filhos a seguir em frente.


Em uma das passagens mais famosas do Talmude, o Talmude Babilônico ( Baba Metzia 59b) descreve como os Sábios venceram o Rabino Eliezer na votação, apesar de sua opinião ter sido apoiada por uma Voz Celestial. O texto continua descrevendo um encontro entre o Rabino Natan e o Profeta Elias. O Rabino Natan pergunta ao Profeta: Qual foi a reação de D-s naquele momento, quando a lei foi decidida por maioria de votos, em vez de seguir aquela Voz Celestial? Elias responde: "Ele sorriu e disse: 'Meus filhos Me derrotaram! Meus filhos Me derrotaram!'"


Ser pai ou mãe no judaísmo é criar espaço para que uma criança possa crescer. Surpreendentemente, isso se aplica mesmo quando o pai ou a mãe é o próprio D-s (Avinu , "nosso Pai"). Nas palavras do Rabino Joseph Soloveitchik:

““O Criador do mundo diminuiu a imagem e a grandeza da criação a fim de deixar algo para o homem, obra de Suas mãos, fazer, para assim coroar o homem com o título de criador e realizador.”  Homem Haláchico, p. 107

Essa ideia encontra expressão na halachá, a lei judaica. Apesar da ênfase da Torá em honrar e reverenciar os pais, Maimônides determina:

Embora se exija que os filhos se esforcem muito [para honrar os pais], é proibido ao pai impor-lhes um jugo muito pesado ou ser muito exigente com eles em questões relacionadas à sua honra, para não os fazer tropeçar. Ele deve perdoá-los e fechar os olhos, pois um pai tem o direito de renunciar à honra que lhe é devida. Hilchot Mamrim 6:8

A história de Avraham pode ser lida de duas maneiras, dependendo de como conciliamos o final do capítulo 11 com o início do capítulo 12. Uma leitura enfatiza a descontinuidade: Avraham rompeu com tudo o que o precedeu. A outra, a continuidade: Terah, seu pai, já havia começado a lutar contra a idolatria. Ele havia iniciado a longa caminhada rumo à terra que eventualmente se tornaria sagrada, mas parou no meio do caminho. Avraham completou a jornada iniciada por seu pai.


Talvez a própria infância tenha a mesma ambiguidade. Há momentos, especialmente na adolescência, em que dizemos a nós mesmos que estamos rompendo com nossos pais, traçando um caminho completamente novo. Só em retrospectiva, muitos anos depois, percebemos o quanto devemos a eles – como, mesmo nos momentos em que sentíamos mais fortemente que estávamos iniciando uma jornada exclusivamente nossa, estávamos, de fato, vivendo os ideais e as aspirações que aprendemos com eles. E tudo começou com o próprio D-s, que deixou – e continua deixando – espaço para nós, Seus filhos, seguirmos em frente.

 

 

Texto original “Our Children Walk on Ahead” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l




  • 20 de out.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 22 de out.

NOACH

Moralidade Verdadeira

Existe algo como uma base objetiva para a moralidade? Por algum tempo, nos círculos seculares, essa ideia pareceu absurda. Moralidade é o que escolhemos que ela seja. Somos livres para fazer o que quisermos, desde que não prejudiquemos os outros.


Julgamentos morais não são verdades, mas escolhas. Não há como ir do "é" ao "deveria", da descrição à prescrição, dos fatos aos valores, da ciência à ética. Essa foi a sabedoria popular na filosofia por um século após Nietzsche defender o abandono da moralidade – que ele via como produto do judaísmo – em favor da "vontade de poder".


Recentemente, porém, uma base científica inteiramente nova foi dada à moralidade a partir de duas direções surpreendentes: o neodarwinismo e o ramo da matemática conhecido como Teoria dos Jogos. Como veremos, a descoberta está intimamente relacionada à história de Noach e à aliança feita entre D-s e a humanidade após o Dilúvio.


A teoria dos jogos foi inventada por uma das mentes mais brilhantes do século XX, John von Neumann (1903-1957). Ele percebeu que os modelos matemáticos usados ​​em economia eram irrealistas e não refletiam a forma como as decisões são tomadas no mundo real. A escolha racional não é simplesmente uma questão de ponderar alternativas e decidir entre elas. A razão é que o resultado da nossa decisão frequentemente depende de como outras pessoas reagem a ela, e geralmente não podemos saber isso com antecedência. A teoria dos jogos, invenção de von Neumann em 1944, foi uma tentativa de produzir uma representação matemática da escolha em condições de incerteza. Seis anos depois, produziu seu paradoxo mais famoso, conhecido como o Dilema do Prisioneiro.


Imagine duas pessoas presas pela polícia sob suspeita de cometer um crime. Não há provas suficientes para condená-las por uma acusação grave; há provas suficientes apenas para condená-las por um delito menor. A polícia decide incentivar cada uma a denunciar a outra. Elas as separam e fazem a cada uma a seguinte proposta: se você testemunhar contra o outro suspeito, você será libertado e ele ficará preso por dez anos. Se ele testemunhar contra você e você permanecer em silêncio, você será condenado a dez anos de prisão e ele ficará livre. Se ambos testemunharem um contra o outro, cada um receberá uma pena de cinco anos. Se ambos permanecerem em silêncio, cada um será condenado pela acusação menor e enfrentará uma pena de um ano.


Não demora muito para perceber que a estratégia ideal para cada um é denunciar o outro. O resultado é que cada um ficará preso por cinco anos. O paradoxo é que o melhor resultado seria ambos permanecerem em silêncio. Eles então enfrentariam apenas um ano de prisão. A razão pela qual nenhum dos dois optará por essa estratégia é que ela depende da colaboração. No entanto, como cada um é incapaz de saber o que o outro está fazendo – não há comunicação entre eles – eles não podem correr o risco de permanecer em silêncio. O Dilema do Prisioneiro é notável porque mostra que duas pessoas, ambas agindo racionalmente, produzirão um resultado ruim para ambas. Eventualmente, uma solução foi descoberta. A razão para o paradoxo é que os dois prisioneiros se encontram nessa situação apenas uma vez. Se isso acontecesse repetidamente, eles acabariam descobrindo que a melhor coisa a fazer é confiar um no outro e cooperar.


Enquanto isso, os biólogos lutavam com um fenômeno que intrigava Darwin. A teoria da seleção natural – popularmente conhecida como a sobrevivência do mais apto – sugere que os indivíduos mais implacáveis ​​em qualquer população sobreviverão e transmitirão seus genes para a próxima geração. No entanto, quase todas as sociedades já observadas valorizam indivíduos altruístas: aqueles que sacrificam sua própria vantagem para ajudar os outros. Parece haver uma contradição direta entre esses dois fatos.


O Dilema do Prisioneiro sugeriu uma resposta. O interesse próprio individual frequentemente produz resultados ruins. Qualquer grupo que aprenda a cooperar, em vez de competir, estará em vantagem em relação aos outros. Mas, como o Dilema do Prisioneiro demonstrou, isso requer encontros repetidos – o chamado "Dilema do Prisioneiro Iterado (= repetido)". No final da década de 1970, foi anunciada uma competição para encontrar o programa de computador que melhor se saísse em jogar o Dilema do Prisioneiro Iterado contra si mesmo e outros oponentes.


O programa vencedor foi idealizado pelo canadense Anatole Rapoport e se chamava Tit-for-Tat. Era incrivelmente simples: começava com a cooperação e depois repetia o último movimento do oponente. Funcionava com base na regra "O que você fez comigo, eu farei com você", ou "medida por medida". Esta foi a primeira vez que se obteve prova científica de qualquer princípio moral.


O que é fascinante sobre essa cadeia de descobertas é que ela reflete precisamente o princípio central da aliança que D-s fez com Noach:

Quem derramar sangue humano, pelo homem seu sangue será derramado; pois D-s fez o homem à imagem de D-s.

Isto é medida por medida [em hebraico, middah keneged middah], ou justiça retributiva: Como você faz, assim será feito a você. De fato, neste ponto a Torá faz algo muito sutil. As seis palavras em que o princípio é declarado são uma imagem espelhada uma da outra: [1] Quem derrama [2] o sangue [3] do homem, [3a] pelo homem [2a] seu sangue [1a] será derramado. Este é um exemplo perfeito de estilo refletindo substância: o que é feito para nós é uma imagem espelhada do que fazemos. O fato extraordinário é que o primeiro princípio moral estabelecido na Torá é também o primeiro princípio moral a ser demonstrado cientificamente. Tit-for-Tat é o equivalente computacional da justiça (retributiva):

Quem derramar sangue de homem, pelo homem seu sangue será derramado.

A história tem uma continuação. Em 1989, o matemático polonês Martin Nowak produziu um programa que supera o Tit-for-Tat. Ele o chamou de Generoso. Ele superou uma fraqueza do Tit-for-Tat, ou seja, que quando você encontra um oponente particularmente desagradável, você é arrastado para um ciclo de retaliação potencialmente interminável e destrutivo, o que é ruim para ambos os lados. O Generoso evitou isso esquecendo aleatória, mas periodicamente, o último movimento do oponente, permitindo assim que o relacionamento recomeçasse. O que Nowak havia produzido, na verdade, era uma simulação computacional de perdão.


Mais uma vez, a conexão com a história de Noach e o Dilúvio é direta. Após o Dilúvio, D-s jurou: “Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, embora a inclinação do coração do homem seja má desde a sua juventude; nem tornarei a destruir todos os seres vivos, como fiz.” Este é o princípio do perdão Divino.


Assim, os dois grandes princípios do Pacto Noaíta são também os dois primeiros princípios a serem estabelecidos por simulação computacional. Afinal, existe uma base objetiva para a moralidade. Ela se baseia em duas ideias-chave: justiça e perdão, ou o que os Sábios chamavam de middat ha-din e middat rachamim. Sem estes, nenhum grupo pode sobreviver a longo prazo.


Em uma das primeiras grandes obras da filosofia judaica – Sefer Emunot ve-Deot (O Livro das Crenças e Opiniões) – R. Saadia Gaon (882-942) explicou que as verdades da Torá poderiam ser estabelecidas pela razão. Por que, então, a revelação era necessária? Porque a humanidade leva tempo para chegar à verdade, e há muitos deslizes e armadilhas ao longo do caminho.


Levou mais de mil anos após R. Saadia Gaon para que a humanidade demonstrasse as verdades morais fundamentais que fundamentam a aliança de D-s com a humanidade: que a cooperação é tão necessária quanto a competição, que a cooperação depende da confiança, que a confiança requer justiça e que a própria justiça é incompleta sem o perdão. A moralidade não é simplesmente o que escolhemos que seja. Ela faz parte da estrutura básica do universo, revelada a nós pelo Criador do universo há muito tempo.

 

 

Texto original “True Morality” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l



Ajude a manter a nossa Sinagoga ativa!

bottom of page