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LECH LECHA

  • sinagoga17
  • 29 de out.
  • 5 min de leitura

LECH LECHA

Nossos Filhos Seguem em Frente

O chamado a Avraham, com o qual Lech Lecha começa, parece vir do nada:

“Deixe sua terra, seu local de nascimento e a casa de seu pai e vá para uma terra que eu lhe mostrarei.”

Nada nos preparou para essa mudança radical. Não tivemos uma descrição de Avraham como a que tivemos no caso de Noach ("Noach era um homem justo, perfeito em suas gerações; Noach andava com D-s"). Nem nos foi dada uma série de vislumbres de sua infância, como no caso de Moshe. É como se o chamado de Avraham fosse uma ruptura repentina com tudo o que o precedeu. Parece não haver prelúdio, contexto ou pano de fundo.


A isto se acrescenta um versículo curioso no último discurso proferido por Yehoshua (Josué), sucessor de Moshe:

Então Josué disse a todo o povo: Assim diz o Senhor, o D-s de Israel: 'Há muito tempo, vossos pais viviam além do rio (Eufrates), Terah, pai de Avraham e de Nachor; e eles serviam a outros deuses. Josué 24:2

A implicação parece ser que o pai de Avraham era um idólatra. Daí a famosa tradição midráshica de que, quando criança, Avraham quebrou os ídolos de seu pai. Quando Terah lhe perguntou quem havia causado o dano, ele respondeu: "O maior dos ídolos pegou um pedaço de pau e quebrou os demais".

“Por que você está me enganando?”, perguntou Terah. “Os ídolos têm entendimento?”
“Que os teus ouvidos ouçam o que a tua boca diz”, respondeu a criança. Bereishit Rabá 38:8

Nessa leitura, Avraham era um iconoclasta, um destruidor de imagens, alguém que se rebelou contra a fé de seu pai.


Maimônides, o filósofo, expressou a questão de forma um pouco diferente. Originalmente, os seres humanos acreditavam em um D-s único. Mais tarde, começaram a oferecer sacrifícios ao sol, aos planetas, às estrelas e a outras forças da natureza, como criações ou servos do D-s único. Mais tarde ainda, passaram a adorá-los como entidades – deuses – por direito próprio. Foi preciso Avraham, usando apenas a lógica, para perceber a incoerência do politeísmo:

Depois de ser desmamado, ainda criança, sua mente começou a refletir. Dia e noite, ele pensava e se perguntava: como é possível que esta esfera celeste guie continuamente o mundo, sem algo para guiá-la e fazê-la girar? Pois ela não pode se mover por conta própria. Ele não tinha professor ou mentor, pois estava imerso em Ur dos Caldeus, entre idólatras tolos. Seu pai, sua mãe e toda a população adoravam ídolos, e ele adorava com eles. Ele continuou a especular e refletir até alcançar o caminho da verdade, entendendo o que era certo por meio de seus próprios esforços. Foi então que ele soube que existe um D-s que guia os corpos celestes, que criou tudo e, além dele, não há outro D-s.  Maimônides, Leis da Idolatria 1:2

O que Maimônides e o Midrash têm em comum é a descontinuidade. Avraham representa uma ruptura radical com tudo o que o precedeu.


Notavelmente, porém, o capítulo anterior nos dá uma perspectiva bem diferente:

Estas são as gerações de Terah. Terah gerou Avram, Nachor e Haran; e Haran gerou Lot... Terah tomou seu filho Avram, e Lot, filho de Haran, seu neto, e Sarai, sua nora, mulher de seu filho Avram, e partiram juntos de Ur dos Caldeus para a terra de Canaan. Chegando a Haran, estabeleceram-se ali. Terah viveu 205 anos, e Terah morreu em Haran.  Gênesis 11:27-32

A implicação parece ser que, longe de romper com seu pai, Avraham estava continuando uma jornada que Terah já havia começado.


Como conciliar essas duas passagens? A maneira mais simples, adotada pela maioria dos comentaristas, é que elas não estão em sequência cronológica. O chamado a Avraham (em Gênesis 12) aconteceu primeiro. Avraham ouviu o chamado divino e o comunicou ao pai. A família partiu junta, mas Terah parou no meio do caminho, em Haran. A passagem que registra a morte de Terah é colocada antes do chamado de Avraham, embora tenha ocorrido mais tarde, para protegê-lo da acusação de que ele falhou em honrar seu pai ao abandoná-lo na velhice (Rashi, Midrash).


No entanto, há outra possibilidade óbvia. A percepção espiritual de Avraham não surgiu do nada. Terah já havia dado o primeiro passo em direção ao monoteísmo. Os filhos completam o que seus pais começam.


Significativamente, tanto a Bíblia quanto a tradição rabínica entendiam a paternidade divina dessa maneira. Elas contrastavam a descrição de Noach (“Noach andou com D-s”) e a de Avraham. (“O D-s diante de quem andei”, Gênesis 24:40) O próprio D-s diz a Avraham: “Anda na minha frente e sê perfeito”. (Gênesis 17:1) D-s sinaliza o caminho e então desafia Seus filhos a seguir em frente.


Em uma das passagens mais famosas do Talmude, o Talmude Babilônico ( Baba Metzia 59b) descreve como os Sábios venceram o Rabino Eliezer na votação, apesar de sua opinião ter sido apoiada por uma Voz Celestial. O texto continua descrevendo um encontro entre o Rabino Natan e o Profeta Elias. O Rabino Natan pergunta ao Profeta: Qual foi a reação de D-s naquele momento, quando a lei foi decidida por maioria de votos, em vez de seguir aquela Voz Celestial? Elias responde: "Ele sorriu e disse: 'Meus filhos Me derrotaram! Meus filhos Me derrotaram!'"


Ser pai ou mãe no judaísmo é criar espaço para que uma criança possa crescer. Surpreendentemente, isso se aplica mesmo quando o pai ou a mãe é o próprio D-s (Avinu , "nosso Pai"). Nas palavras do Rabino Joseph Soloveitchik:

““O Criador do mundo diminuiu a imagem e a grandeza da criação a fim de deixar algo para o homem, obra de Suas mãos, fazer, para assim coroar o homem com o título de criador e realizador.”  Homem Haláchico, p. 107

Essa ideia encontra expressão na halachá, a lei judaica. Apesar da ênfase da Torá em honrar e reverenciar os pais, Maimônides determina:

Embora se exija que os filhos se esforcem muito [para honrar os pais], é proibido ao pai impor-lhes um jugo muito pesado ou ser muito exigente com eles em questões relacionadas à sua honra, para não os fazer tropeçar. Ele deve perdoá-los e fechar os olhos, pois um pai tem o direito de renunciar à honra que lhe é devida. Hilchot Mamrim 6:8

A história de Avraham pode ser lida de duas maneiras, dependendo de como conciliamos o final do capítulo 11 com o início do capítulo 12. Uma leitura enfatiza a descontinuidade: Avraham rompeu com tudo o que o precedeu. A outra, a continuidade: Terah, seu pai, já havia começado a lutar contra a idolatria. Ele havia iniciado a longa caminhada rumo à terra que eventualmente se tornaria sagrada, mas parou no meio do caminho. Avraham completou a jornada iniciada por seu pai.


Talvez a própria infância tenha a mesma ambiguidade. Há momentos, especialmente na adolescência, em que dizemos a nós mesmos que estamos rompendo com nossos pais, traçando um caminho completamente novo. Só em retrospectiva, muitos anos depois, percebemos o quanto devemos a eles – como, mesmo nos momentos em que sentíamos mais fortemente que estávamos iniciando uma jornada exclusivamente nossa, estávamos, de fato, vivendo os ideais e as aspirações que aprendemos com eles. E tudo começou com o próprio D-s, que deixou – e continua deixando – espaço para nós, Seus filhos, seguirmos em frente.

 

 

Texto original “Our Children Walk on Ahead” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l




 
 

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