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Atualizado: há 3 dias
BAMIDBAR
A História Sempre Repetida
Bamidbar retoma a história como a deixamos perto do final de Shemot. O povo viajou do Egito até o Monte Sinai. Lá, eles receberam a Torá. Lá, eles fizeram o Bezerro de Ouro. Lá, eles foram perdoados após o apelo apaixonado de Moisés, e lá eles construíram o Mishkan (o Tabernáculo) inaugurado no primeiro dia de Nissan, quase um ano após o Êxodo. Agora, um mês depois, no primeiro dia do segundo mês (Iyar), eles estão prontos para prosseguir para a segunda parte da jornada, do Sinai até a Terra Prometida.
No entanto, há um curioso atraso na narrativa. Dez capítulos se passam até que os israelitas realmente comecem a viajar. (Números 10:33) Primeiro, há um censo. Depois, há um relato da disposição das tribos ao redor do Ohel Moed — a Tenda do Encontro. Há um longo relato sobre os levitas, suas famílias e respectivos papéis. Depois, há leis sobre a pureza do acampamento, a restituição, a sotah (a mulher suspeita de adultério) e o nazireu. Uma longa série de passagens descreve os preparativos finais para a jornada. Só então eles partem. Por que essa longa série de aparentes digressões?
É fácil pensar na Torá como um simples relato dos eventos conforme ocorreram, intercalados com vários mandamentos. Nessa visão, a Torá é história mais lei. Foi isso que aconteceu, essas são as regras que devemos obedecer, e há uma conexão entre elas, às vezes clara (como no caso das leis acompanhadas da lembrança de que "vocês foram escravos no Egito"), às vezes nem tanto.
Mas a Torá não é mera história como uma sequência de eventos. A Torá é sobre as verdades que emergem ao longo do tempo. Essa é uma das grandes diferenças entre o antigo Israel e a Grécia antiga. A Grécia antiga buscava a verdade contemplando a natureza e a razão. A primeira deu origem à ciência, a segunda à filosofia. O antigo Israel encontrou a verdade na história, nos eventos e no que D-s nos disse para aprendermos com eles. A ciência é sobre a natureza, o judaísmo é sobre a natureza humana, e há uma grande diferença entre eles. A natureza não sabe nada sobre o livre-arbítrio. Os cientistas frequentemente negam que ele exista. Mas a humanidade é constituída por sua liberdade. Nós somos o que escolhemos ser. Nenhum planeta escolhe ser hospitaleiro à vida. Nenhum peixe escolhe ser um herói. Nenhum pavão escolhe ser vaidoso. Os humanos escolhem. E nesse fato nasce o drama para o qual toda a Torá é um comentário: como a liberdade pode coexistir com a ordem? O drama se passa no palco da história e se desenrola em cinco atos, cada um com múltiplas cenas.
A forma básica da narrativa é praticamente a mesma em todos os cinco casos. Primeiro, D-s cria a ordem. Depois, a humanidade cria o caos. Seguem-se consequências terríveis. Então, D-s recomeça, profundamente entristecido, mas nunca perdendo a fé na única forma de vida na qual fixou Sua imagem e à qual concedeu o dom singular que tornou a humanidade divina, a saber, a própria liberdade.
O Ato I é narrado em Gênesis 1-11. D-s cria um universo ordenado e molda a humanidade a partir do pó da terra, no qual Ele sopra Seu próprio fôlego. Mas os humanos pecam: primeiro Adam e Eva, depois Caim, depois a geração do Dilúvio. A terra está cheia de violência. D-s traz o Dilúvio e começa de novo, fazendo uma aliança com Noah. A humanidade peca novamente ao construir a Torre de Babel (o primeiro ato de imperialismo, como argumentei em um estudo anterior). Então D-s começa de novo, buscando um modelo que mostre ao mundo o que é viver em resposta fiel à palavra de D-s. Ele o encontra em Avraham e Sarah.
O Ato II é narrado em Gênesis 12-50. A nova ordem é baseada na família e na fidelidade, no amor e na confiança. Mas isso também começa a se desfazer. Há tensão entre Esav e Yaakov, entre as esposas de Yaakov, Lia e Rachel, e entre seus filhos. Dez dos filhos de Yaakov vendem o décimo primeiro, Yossef, como escravo. Isso é uma ofensa à liberdade, e a catástrofe se segue – não um Dilúvio, mas uma fome, como resultado da qual a família de Yaakov vai para o exílio no Egito, onde todo o povo se torna escravizado. D-s está prestes a começar de novo, não com uma família desta vez, mas com uma nação, que é o que os filhos de Avraham agora se tornaram.
O Ato III é o tema do livro de Shemot. D-s resgata os israelitas do Egito, assim como resgatou Noah do Dilúvio. Assim como com Noah (e Avraham), D-s faz uma aliança, desta vez no Sinai, e ela é muito mais abrangente do que suas antecessoras. É um projeto para a ordem social, para uma sociedade inteira baseada na lei e na justiça. Mais uma vez, porém, os humanos criam o caos, ao fabricarem um Bezerro de Ouro apenas quarenta dias após a grande revelação. D-s ameaça com uma catástrofe, destruindo toda a nação e recomeçando com Moisés, como fizera com Noah e Avraham. (Êx. 32:10) Somente o apelo apaixonado de Moisés impede que isso aconteça. D-s então institui uma nova ordem.
O Ato IV começa com um relato dessa ordem, que é inédito, longo, estendendo-se de Êxodo 35, por todo o livro de Vaykra e os primeiros dez capítulos de Bamidbar. A natureza dessa nova ordem é que D-s se torna não apenas o diretor da história e o doador de leis. Ele se torna uma Presença permanente no meio do acampamento. Daí a construção do Mishkan, que ocupa o último terço de Shemot, e as leis de pureza e santidade, bem como as de amor e justiça, que constituem virtualmente todo o Vaykra. Pureza e santidade são exigidas pelo fato de que D-s se tornou repentinamente próximo. No Tabernáculo, a Presença Divina tem um lar na terra, e quem se aproxima de D-s deve ser santo e puro. Agora os israelitas estão prontos para começar a próxima etapa da jornada, mas somente após uma longa introdução.
Aquela longa introdução, no início de Bamidbar, tem como objetivo criar um senso de ordem dentro do acampamento. Daí o censo, a disposição detalhada das tribos e o longo relato dos levitas, a tribo que mediava entre o povo e a Presença Divina. Daí também, na Parashá da próxima semana, as três leis – a restituição, a sotah e o nazir – direcionadas às três forças que sempre colocam em perigo a ordem social: roubo, adultério e álcool. É como se D-s estivesse dizendo aos israelitas: é assim que a ordem se parece. Cada pessoa tem seu lugar dentro da família, da tribo e da nação. Todos foram contados e cada pessoa conta. Preserve e proteja essa ordem, pois sem ela você não pode entrar na terra, lutar suas batalhas e criar uma sociedade justa.
Tragicamente, à medida que Bamidbar se desenrola, vemos que os israelitas se revelam seus piores inimigos. Reclamam da comida. Miriam e Aaron reclamam de Moisés. Então vem a catástrofe, o episódio dos espiões, em que o povo, desmoralizado, demonstra que ainda não está pronto para a liberdade. Novamente, como no caso do Bezerro de Ouro, há caos no acampamento. Novamente D-s ameaça destruir a nação e recomeçar com Moisés. (Números 14:12) Novamente, apenas o poderoso apelo de Moisés salva o dia. D-s decide recomeçar, desta vez com a próxima geração e um novo líder. O livro de Devarim é o prelúdio de Moisés para o Ato V, que se passa nos dias de seu sucessor, Josué.
A história judaica é estranha. Repetidamente, o povo judeu se dividiu: nos dias do Primeiro Templo, quando o reino se dividiu em dois; no final do Segundo Templo, quando foi dividido em grupos e seitas rivais; e na era moderna, no início do século XIX, quando se fragmentou em religiosos e seculares na Europa Oriental, ortodoxos e outros no Ocidente. Essas divisões ainda não foram sanadas.
E assim o povo judeu continua repetindo a história contada cinco vezes na Torá. D-s cria a ordem. Os humanos criam o caos. Coisas ruins acontecem, e então D-s e Israel recomeçam. A história nunca terá fim? De uma forma ou de outra, não é coincidência que Bamidbar geralmente precede Shavuot, o aniversário da entrega da Torá no Sinai. D-s nunca se cansa de nos lembrar que o desafio humano central em todas as épocas é se a liberdade pode coexistir com a ordem. Ela pode, quando os humanos escolhem livremente seguir as leis de D-s, dadas de uma forma à humanidade após o Dilúvio e de outra a Israel após o Êxodo.
A alternativa, antiga e moderna, é o governo do poder, no qual, como disse Tucídides, os fortes fazem o que querem e os fracos sofrem o que devem. Isso não é liberdade como a Torá a entende, nem é uma receita para o amor e a justiça. A cada ano, ao nos prepararmos para Shavuot lendo a Parshá Bamidbar, ouvimos o chamado de D-s: aqui na Torá – e em suas mitzvot – está o caminho para criar uma liberdade que honre a ordem e uma ordem social que honre a liberdade humana. Não há outro caminho.
Texto original “The Ever-Repeated Story” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l