- 15 de mai.
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Santidade e Parto
As sidrot de Tazria e Metsora contêm leis que estão entre as mais difíceis de compreender. Elas tratam de condições de “impureza” decorrentes do fato de sermos seres físicos, almas encarnadas e, portanto, expostos (nas palavras de Hamlet) “aos mil choques naturais aos quais a carne é herdeira”.
Embora tenhamos anseios imortais, a mortalidade é a condição da existência humana, assim como de toda vida corpórea.
Rambam explica:
Já mostramos que, de acordo com a sabedoria Divina, a gênese só pode ocorrer por meio da destruição, e sem a destruição dos membros individuais da espécie, a própria espécie não existiria permanentemente… Aquele que pensa que pode ter carne e ossos sem estar sujeito a qualquer influência externa, ou a qualquer acidente da matéria, inconscientemente deseja reconciliar dois opostos, a saber, estar ao mesmo tempo sujeito e não sujeito à mudança. (Maimônides, Guia para os Perplexos, III:12)
Ao longo da história, houve duas maneiras distintas e opostas de se relacionar com esse fato: o hedonismo (viver para o prazer físico) e o ascetismo (renunciar ao prazer físico). O primeiro venera o físico enquanto nega o espiritual, enquanto o segundo entroniza o espiritual em detrimento do físico.
O caminho judaico sempre foi diferente: santificar o físico – comer, beber, fazer sexo e descansar – tornando a vida do corpo um veículo para a Presença Divina. A razão é simples. Cremos com fé perfeita que o D-s da redenção é também o D-s da criação. O mundo físico que habitamos é aquele que D-s criou e declarou “muito bom”. Ser hedonista é negar D-s. Ser asceta é negar a bondade do mundo de D-s. Ser judeu é celebrar tanto a criação quanto o Criador. Esse é o princípio que explica muitas características da vida judaica, de outra forma incompreensíveis.
As leis com as quais a Parashá começa são exemplos marcantes disso:
Quando uma mulher conceber e der à luz um menino, ela será teme’ah por sete dias, assim como durante o período de separação, quando estiver menstruada… Depois, por mais trinta e três dias, ela terá um período de espera durante o qual seu sangue será ritualmente limpo. Até que esse período de purificação se complete, ela não tocará em nada sagrado e não entrará no Santuário.Se ela der à luz uma menina, terá por duas semanas o mesmo status de teme’ah que durante o período menstrual. Depois disso, por sessenta e seis dias, terá um período de espera durante o qual seu sangue estará ritualmente limpo.
Ela então traz um holocausto e uma oferta pelo pecado, após o que é restaurada à “pureza ritual”. Qual é o significado dessas leis? Por que o parto torna a mãe teme’ah (geralmente traduzido como “ritualmente impura”, melhor entendido como “uma condição que impede ou isenta de um encontro direto com a santidade”)? E por que o período após o parto de uma menina é o dobro do de um menino?
Há uma tentação de ver essas leis como inerentemente além do alcance da compreensão humana. Diversas declarações rabínicas parecem dizer exatamente isso. Na verdade, não é assim, como Maimônides explica detalhadamente no Guia. Certamente, nunca podemos saber – especificamente com relação às leis que têm a ver com kedusha (santidade) e tehara (pureza) – se nossa compreensão está correta. Mas não somos forçados a abandonar nossa busca por compreensão, mesmo que qualquer explicação seja, na melhor das hipóteses, especulativa e provisória.
O primeiro princípio essencial para a compreensão das leis da pureza e da impureza ritual é que D-s é vida. O judaísmo rejeita profundamente os cultos, antigos e modernos, que glorificam a morte. As grandes pirâmides do Egito eram túmulos grandiosos. Arthur Koestler observou que, sem a morte, “as catedrais ruem, as pirâmides desaparecem na areia, os grandes órgãos silenciam”. Os poetas metafísicos ingleses recorriam constantemente a ela como tema. Como escreveu T.S. Eliot:
Webster estava muito possuído pela morteE viu o crânio sob a pele…Donne, suponho, era outro…Ele conhecia a angústia da medulaA febre do esqueleto… (Sussurros da Imortalidade, T. S. Eliot)
Freud cunhou a palavra thanatos para descrever o caráter da vida humana direcionado à morte. O judaísmo é um protesto contra culturas centradas na morte. “Não são os mortos que louvam o Senhor, nem os que descem ao silêncio” (Salmo 114). “Que proveito há na minha morte, se eu descer à cova? Pode o pó reconhecer-te? Pode proclamar a tua verdade?” (Salmo 30). Ao abrirmos um Sefer Torá, dizemos: “Todos vós que vos apegastes ao Senhor vosso D-s estais vivos hoje” (Deut 4:4). A Torá é uma árvore da vida. D-s é o D-s da vida. Como Moshe disse em duas palavras memoráveis: “Escolha a vida” (Dt 30:19).
Conclui-se que kedushá (santidade) – um ponto no tempo ou espaço onde nos encontramos na presença imediata de D-s – envolve uma consciência suprema da vida. É por isso que o caso paradigmático de tumá é o contato com um cadáver. Outros casos de tumá incluem doenças ou emissões corporais que nos lembram da nossa mortalidade. O domínio de D-s é a vida. Portanto, não pode ser associado de forma alguma a indícios de morte.
É assim que Judah Halevi explica as leis de pureza:
Um corpo morto representa o mais alto grau de perda da vida, e um membro leproso é como se estivesse morto. O mesmo ocorre com a perda da semente, pois ela havia sido dotada de poder vital, capaz de gerar um ser humano. Sua perda, portanto, contrasta com a vida e a respiração. (O Kuzari, II:60)
As leis de pureza se aplicam exclusivamente a Israel, argumenta Halevi, precisamente porque o judaísmo é a religião suprema da vida, e seus adeptos são, portanto, hipersensíveis até mesmo às mais sutis distinções entre vida e morte.
Um segundo princípio, igualmente marcante, é a aguda sensibilidade que o judaísmo demonstra ao nascimento de uma criança. Nada é mais “natural” do que a procriação. Todo ser vivo se envolve nela. Sociobiólogos chegam a argumentar que um ser humano é a maneira de um gene criar outro gene. Em contraste, a Torá se esforça para descrever como muitas das heroínas da Bíblia – entre elas Sara, Rivka, Rachel, Hanna e a sunamita – eram inférteis e tiveram filhos apenas por meio de um milagre.
Claramente, a Torá pretende transmitir uma mensagem aqui, e ela é inconfundível. Ser judeu é saber que a sobrevivência não é uma questão apenas de biologia. O que outras culturas podem considerar natural é para nós um milagre. Cada criança judia é uma dádiva de D-s. Nenhuma fé levou as crianças mais a sério ou dedicou mais esforços à criação da próxima geração. O parto é maravilhoso. Ser pai ou mãe é o mais perto que qualquer um de nós chega do próprio D-s. É por isso, aliás, que as mulheres estão mais próximas de D-s do que os homens, porque elas, ao contrário dos homens, sabem o que é gerar uma nova vida a partir de si mesmas, assim como D-s gera a vida a partir de si mesmo. A ideia é lindamente capturada no versículo em que, deixando o Éden, Adam se volta para sua esposa e a chama de Chava, “pois ela é a mãe de toda a vida”.
Podemos agora especular sobre as leis relativas ao parto. Quando uma mãe dá à luz, ela corre grande risco. Ao longo dos séculos, o parto tem sido um perigo mortal tanto para a mãe quanto para o bebê, e ainda hoje existem riscos constantes para muitos. Além disso, durante o processo de parto, a mulher é separada daquilo que até então fazia parte de seu próprio corpo (um feto, diziam os rabinos, “é como um membro da mãe”) e que agora se tornou uma pessoa independente. Se isso é assim no caso de um menino, é duplamente verdadeiro no caso de uma menina – que, com a ajuda de D-s, não apenas viverá, mas poderá, em anos posteriores, tornar-se uma fonte de nova vida. Em certo nível, portanto, as leis sinalizam o desapego da vida pela vida.
Em outro nível, certamente sugerem algo mais profundo. Há um princípio haláchico: “Aquele que se dedica a uma mitzvá está isento de outras mitzvot”. É como se D-s dissesse à mãe: por quarenta dias no caso de um menino, e duplamente no caso de uma menina (o vínculo mãe-filha é ontologicamente mais forte do que entre mãe e filho): Eu a isento de vir diante de Mim no lugar da santidade porque você está totalmente engajada em um dos atos mais sagrados de todos: nutrir e cuidar de seu filho. Ao contrário de outros, você não precisa visitar o Templo para se apegar à vida em todo o seu esplendor sagrado. Você a está experimentando pessoalmente, diretamente e com cada fibra do seu ser. Daqui a alguns dias, semanas, você virá e dará graças diante de Mim (juntamente com oferendas por ter sobrevivido a um momento de perigo). Mas, por enquanto, olhe para seu filho com admiração. Pois você teve um vislumbre do grande segredo, conhecido apenas por D-s.
O parto isenta a nova mãe da presença no Templo, pois sua presença ao lado do leito reproduz a experiência do Templo. Ela agora sabe o que significa para o amor gerar vida e, em meio à mortalidade, ser tocada por uma insinuação de imortalidade.
Texto original “Holiness and Childbirth” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l